Carlos Drummond de Andrade
Em 31 de Outubro 1902, Estava nascendo o menino predestinado a falar ao mundo através de poemas. Iniciou o curso primário no grupo escolar Dr. Carvalho de Brito, em 1910, aos 8 anos de idade. Posteriormente teve que interromper os estudos por problemas de saúde. Teve aulas particulares com o professor Emílio Magalhães, em Itabira. Ingressou como interno no colégio Anchieta, da companhia de Jesus em Nova Friburgo. Foi expulso do colégio em conseqüência de um incidente com o professor de português. Suas escritas se iniciou com uma caneta Parquer 51 dourada, a mais famosa daqueles tempos, que herdou do seu pai
Sua escrita inicial foi no jornalzinho Maio... que teve uma única circulação, com o poema em prosa “ONDA” Daí pra frente não parou mais de escrever. Carlos Drummond de Andrade escreveu de tudo, começou exaltando sua terra natal.
ALGUNS ANOS VIVI EM ITABIRA.
MAS COMO DÓI !
Dolores com quem se casou, ele conheceu num cinema em Belo Horizonte, em 1920. Trocaram olhares, mas ela não quis intimidade. Mas depois que se casaram, em 1925 mudaram-se para o Rio. Portinari fez um retrato dele extraordinário, mostrando os traços crus de um rosto tenso e belíssimo. Tanto que as mulheres se jogavam em cima dele. E ela ficava irritada. Sabe quem ? Sua amante Lígia Fernandes. Os dois se conheceram em 1951, com uma enorme diferença de idade, ele tinha 49 anos e ela 22, era solteira e bibliotecária do Patrimônio Histórico e Cultural Artístico Nacional.
Ele a assediava de terno e gravata e lhe servia cafezinho e aproveitava para mostrar seus textos. Ela tomava o café e passava a limpo na maquina os textos manuscritos dele.
Sendo assim o poeta saia da sua fiel castidade matrimonial, e escrevia, para a amante, os versos Campos de flores.
QUANTOS FRUTOS NÃO SÃO COLHIDOS OU SABEM A VERME.
DEUS... OU FOI TALVES... O DIABO, DEU-ME ESTE AMOR MADURO.
E A UM, E OUTRO AGRADEÇO, POIS QUE TENHO UM AMOR.
Era Hilda Hilst. Uma beleza de moça. Jovem poetisa paulista, de família tradicionalíssima , penteada por Prados e penteados. Ela gostaria de conhecer o grande versejador das alterosas.
Ele tinha 50 anos, ela 22. Os dois ficavam passeando pela praia , onde foram vistos varias vezes. Ela vivia em festas paulistanas de ricos. Muito, bem vestida, pêlos costureiros da época, inclusive por Denner, e ele sentia ciúmes. No ultimo dia de 1952, ele ao ler um jornal, mandou-lhe um poema protesto-amoroso. Helena Hilst hoje com 72 anos(2001) vive reclusa numa chácara em campinas.
Porem ele continuava com sua Lígia, com quem nunca se desgrudou, e a ela reproduzia o poema de sete faces, que tinha um adendo.
“Se eu tivesse sete faces em todas elas haveria um sorriso para Lígia.”
Até que um dia eles (os amantes) trombaram com Dolores, (a esposa)
A reação da esposa traída nessa trombada é desconhecida.
O que se passou depois, gera controvérsias, mas sabe-se que Dolores propôs que se separassem, mas ele disse que se mataria, caso isso acontecesse. Drummond prezava demais a dimensão institucional de cartório, do seu casamento.
O poeta se equilibrou assim nessa vida dupla porque, misteriosamente , era a favor do casamento, o dele e todos os demais. Recriminava os amigos que viviam trocando de mulher.
Quando Vinícius de Morais morreu, em 9 de julho de 1980. Drummond estava com herpes. As feridas no rosto lhe, impedia de fazer a barba e ele não saia de casa.
Mas com aquele aspecto sombrio e parecendo sujo que compareceu ao cemitério São João Batista e para surpresa geral, pôs-se a falar. “Eu queria ser Vinícius de Morais” disse sobre o caixão do poeta, compositor, diplomata e polígamo, que se casara 9 vezes, acentuando que ele passara pelo mundo vivendo sobre o signo da paixão, aos trancos e barrancos. “Foi o único de nós que teve vida de poeta. Tinha o fôlego dos românticos , a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos. Era o homem do seu tempo, exercendo a liberdade , a licença , o esplendido cinismo dos modernos”
Só faltou dizer quem tinha facilidade de pegar mulher e se casar.
Drummond adorava sua filha, com quem tinha uma boa convivencia.
Um dia ela se foi e, ele não aguentou a distancia da filha.
Doze dias depois da morte dela, ele veio a falecer.
Era o dia 17 de agosto de 1987.
A poesia estava de luto.
Carlos Drummond de Andrade
(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa o
insuportável mau cheiro da memória.
(Resíduo)
MÃOS DADAS
Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro / Estou preso á vida e olho meus companheiros. / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. / Entre eles, considero a enorme realidade. / O presente é tão grande, não nos afastemos. / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. / Não serei o cantor de uma mulher, de uma historia. / Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela. Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, / Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. / O tempo é a minha matéria, o tempo presente.
Em 1930, publica seu primeiro livro. Alguma poesia.
“Minha mão está suja. / É preciso corta-la. / Inútil reter a ignóbil mão suja posta sobre a mira. / depressa corta-la, fazê-la em pedaços e joga-la ao mar !”
INICIAÇÃO
Ainda jovem, Carlos Drummond de Andrade, teve sua iniciação amorosa, num dia quente, com uma lavadeira imensa de pernas morenas. Olhou, olhou. E passou para o papel...O
QUE SE PASSA NA CAMA É SEGREDO DE QUEM AMA.
Escreveu mais
NO MARMORE DA TUA BUNDA / GRAVEI O MEU EPITAFIO. / AGORA QUE NOS SEPARAMOS, MINHA MORTE JÁ NÃO ME PERTENCE. / TU A LEVASTE CONTIGO.
A BUNDA
A bunda que engraçada. Está sempre sorrindo. / Nunca é trágica. Não importa o que vai pela
Também assinou entre outros, poemas imorais como.
A LINGUA LAMBE
Era bom alisar seu traseiro marmóreo, sugar e ser sugado pelo prazer. Ó tu puta encanecida. Não quero ser o ultimo a comer-te. E a bunda, que engraçada. / Não seria o canto de uma mulher / De uma historia do anoitecer . / Não direi o suspiro á paisagem vista da janela. / Não distribuirei entorpecentes / ou cartas de suicídio. / Não fugirei para ilhas, / e nem serei raptado por Serafins / O tempo é a minha matéria. O tempo presente. / Os homens presentes. A vida presente
QUADRILHA
João amava Teresa, que amava Raimundo, / que amava Maria, que amava Joaquim, que amava Lili, / que não amava ninguém. João. foi para os Estados Unidos, / Teresa, para o convento, Raimundo morreu de desastre, / Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e / Lili casou com J. Pinto Fernandes / Que não tinha entrado na historia.
Caso do Vestido
(Carlos Drummond de Andrade)
Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego?
Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou.
Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida?
Minhas filhas, boca presa. Vosso pai e vem chegando.
Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido.
Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não o veste.
O vestido, nesse prego, está morto, sossegado.
Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo!
Minhas filhas, escutai palavras de minha boca.
Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se.
E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós,
se afastou de toda vida, se fechou, se devorou,
chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu,
me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe,
mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou.
Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro
beberia seu sobejo, lamberia seu sapato.
Mas a dona nem ligou. Então vosso pai, irado,
me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa,
que tivesse paciência e fosse dormir com ele...
Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos.
Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos.
Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau.
Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo.
E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade.
Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo.
Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto,
só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem.
Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam.
Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam.
O seu vestido de renda, de colo mui devassado,
mais mostrava que escondia as partes da pecadora.
Eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim.
Sai pensando na morte, mas a morte não chegava.
Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio,
visitei vossos parentes, não comia, não falava,
tive uma febre terçã, mas a morte não chegava.
Fiquei fora de perigo, fiquei de cabeça branca,
perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce,
minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram,
minha corrente de ouro pagou conta de farmácia.
Vosso pais sumiu no mundo. O mundo é grande e pequeno.
Um dia a dona soberba me aparece já sem nada,
pobre, desfeita, mofina, com sua trouxa na mão.
Dona, me disse baixinho, não te dou vosso marido,
que não sei onde ele anda. Mas te dou este vestido,
última peça de luxo que guardei como lembrança
daquele dia de cobra, da maior humilhação.
Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou.
Mas então ele enjoado confessou que só gostava
de mim como eu era dantes. Me joguei a suas plantas,
fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara,
me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza,
me cortei de canivete, me atirei no sumidouro,
bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas,
dona, de nada valeu: vosso marido sumiu.
Aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito
de ofender dona casada pisando no seu orgulho.
Recebei esse vestido e me dai vosso perdão.
Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes?
quede graça de sorriso, quede colo de camélia?
quede aquela cinturinha delgada como jeitosa?
quede pezinhos calçados com sandálias de cetim?
Olhei muito para ela, boca não disse palavra.
Peguei o vestido, pus nesse prego da parede.
Ela se foi de mansinho e já na ponta da estrada
vosso pai aparecia. Olhou pra mim em silêncio,
mal reparou no vestido e disse apenas: — Mulher,
põe mais um prato na mesa. Eu fiz, ele se assentou,
comeu, limpou o suor, era sempre o mesmo homem,
comia meio de lado e nem estava mais velho.
O barulho da comida na boca, me acalentava,
me dava uma grande paz, um sentimento esquisito
de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada.
Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada.
Depois do jantar
Carlos Drummond de Andrade
Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
— Não fumo, respondeu o outro.
Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:
— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
— Como?
— Já disse. Vai passando o relógio.
— Mas ...
— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
— Agora posso continuar?
— Continuar o quê?
— O passeio. Eu estava passeando, não viu?
— Vi, sim. Espera um pouco.
— Esperar o quê?
— Passa a carteira.
— Mas...
— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
— Diga.
— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
— Não precisa, não precisa.
— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
— Claro.
— Você, o assaltado. Certo?
— Confere.
— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
— Tá bom, não se discute.
— Vamos, procure nos... nos escaninhos.
— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
— Deixe ao menos tirar os documentos?
— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
— Nem uma de quinhentos? Uma só.
— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.
(Carlos Drummond de Andrade)
Pede-se a quem souber do paradeiro de Luísa Porto
avise sua residência À Rua Santos Óleos, 48.
Previna urgente solitária mãe enferma
entrevada ha longos anos erma de seus cuidados.
Pede-se a quem avistar Luísa Porto, de 37 anos,
que apareça, que escreva,que mande dizer onde está.
Suplica-se ao repórter-amador,ao caixeiro, ao mata-mosquitos,
ao transeunte, a qualquer do povo e da classe média,
até mesmo aos senhores ricos, que tenham pena de mãe aflita
e lhe restituam a filha volatilizada ou pelo menos dêem informações.
É alta, magra, morena, rosto penugento, dentes alvos,
sinal de nascença junto ao olho esquerdo, levemente estrábica.
Vestidinho simples. Óculos. Sumida há três meses. Mãe entrevada chamando.
Roga-se ao povo caritativo desta cidade que tome em consideração um caso de família
digno de simpatia especial. Luísa é de bom gênio, correta, meiga, trabalhadora, religiosa.
Foi fazer compras na feira da praça.Não voltou.
Levava pouco dinheiro na bolsa. (Procurem Luísa.) De ordinário não se demorava.
(Procurem Luísa.) Namorado isso não tinha. (Procurem. Procurem.) Faz tanta falta.
Se todavia não a encontrarem nem por isso deixem de procurar
com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa e talvez encontrem.
Mãe, viúva pobre, não perde a esperança. Luísa ia pouco a cidade
e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada. Sua melhor amiga, depois da mãe enferma, é Rita Santana, costureira, moça desimpedida. a qual não da noticia nenhuma,
limitando-se a responder: Não sei. O que não deixa de ser esquisito.
Somem tantas pessoas anualmente numa cidade como o Rio de janeiro
que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada. Uma vez, em 1898,ou 9,
sumiu o próprio chefe de polícia que saíra a tarde para uma volta no Largo do Rocio
e até hoje. A mãe de Luísa, então jovem, leu no Diário Mercantil, ficou pasma.
O jornal embrulhado na memória. Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,
a pobreza, a paralisia, o queixume seriam, na vida, seu lote e que sua única filha,
afável posto que estrábica, se diluiria sem explicação.
Pela ultima vez e em nome de Deus todo-poderoso e cheio de misericórdia procurem a moça, procurem essa que se chama Luísa Porto e é sem namorado.
Esqueçam a luta política, ponham de lado preocupações comerciais, percam um pouco de tempo indagando, inquirindo, remexendo. Não se arrependerão. Não há gratificação maior do que o sorriso de mãe em festa e a paz intima conseqüente às boas e desinteressadas ações,
puro orvalho da alma. Não me venham dizer que Luísa suicidou-se. O santo lume da fé
ardeu sempre em sua alma pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.
Ela não se matou. Procurem-na. Tampouco foi vítima de desastre que a polícia ignora
e os jornais não deram. Está viva para consolo de uma entrevada
e triunfo geral do amor materno filial e do próximo. Nada de insinuações quanto à moça casta
e que não tinha, não tinha namorado. Algo de extraordinário terá acontecido terremoto,
chegada de rei. As ruas mudaram de rumo, para que demore tanto, é noite.
Mas há de voltar, espontânea ou trazida por mão benigna,
O olhar desviado e terno, canção. A qualquer hora do dia ou da noite
quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos. Não tem telefone.
Tem uma empregada velha que apanha o recado e tomará providencias.
Mas se acharem que a sorte dos povos é mais importante e que não devemos atentar nas dores individuais, se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,não faz mal, insultem a mãe de Luísa, virem a pagina:Deus terá compaixão da abandonada e da ausente, erguerá a enferma, e os membros perclusos já se desatam em forma de busca.Deus lhe dirá :Vai, procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração. Ou talvez não seja preciso esse favor divino.
A mãe de Luísa (somos pecadores) sabe-se indigna de tamanha graça.
E resta a espera, que sempre é um dom.Sim, os extraviados um dia regressam
— ou nunca, ou pode ser, ou ontem.E de pensar realizamos.
Quer apenas sua filhinha que numa tarde remota de Cachoeiro
acabou de nascer e cheira a leite, a cólica, a lágrima.
Já não interessa a descrição do corpo nem esta, perdoem, fotografia,
disfarces de realidade mais intensa e que anúncio algum proverá.
Cessem pesquisas, rádios, calai-vos· Calma de flores abrindo
no canteiro azul onde desabrocham seios e uma forma de virgem
intata nos tempos. E de sentir compreendemos. Já não adianta procurar
minha querida filha Luísa que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo
com inúteis pés fixados, enquanto sofro e sofrendo me solto e me recomponho
e torno a viver e ando, está inerte gravada no centro da estrela invisível Amor.
José
E agora, José? / A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu,
a noite esfriou, / e agora, José? / e agora, Você? / Você que é sem nome,
que zomba dos outros, / Você que faz versos, / que ama, protesta?
e agora, José? / Está sem mulher, / está sem discurso, / está sem carinho,
já não pode beber, / já não pode fumar, / cuspir já não pode, / a noite esfriou,
o dia não veio, / o bonde não veio, / o riso não veio, / não veio a utopia
e tudo acabou / e tudo fugiu / e tudo mofou, / e agora, José?
E agora, José? / sua doce palavra, / seu instante de febre, / sua gula e jejum,
sua biblioteca, / sua lavra de ouro, / seu terno de vidro, / sua incoerência,
seu ódio, - e agora? / Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta; / quer morrer no mar, / mas o mar secou; / quer ir para Minas,
Minas não há mais. / José, e agora? / Se você gritasse, / se você gemesse,
se você tocasse, / a valsa vienense, / se você dormisse,/ se você cansasse,
se você morresse.... / Mas você não morre, / você é duro, José!
Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato, / sem teogonia, / sem parede nua
para se encostar, / sem cavalo preto / que fuja do galope,
você marcha, José! / José, para onde?
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